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10/03/2010

pra recordar

"O TEMPO PASSOU E ME FORMEI EM SOLIDÃO"
José Antônio Oliveira de Resende

Sou do tempo em que ainda se faziam visitas.
Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no
banho porque a família toda iria visitar algum conhecido.
Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé.
Geralmente, à noite. Ninguém avisava nada, o costume era chegar de
paraquedas mesmo.
E os donos da casa recebiam alegres a visita. Aos
poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto! Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha
mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos.
Aí chegava outro menino. Repetia-se toda a diplomacia.
– Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável!
A conversa rolava solta na sala. Meu pai
conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre. Eu e
meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá,
entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre. Retratos na parede,
duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro...
casa singela e acolhedora. A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e
acolhedoras. Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café
aos visitantes.
Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha –
geralmente uma das filhas – e dizia:
– Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.
Tratava-se de uma metonímia gastronômica. O café
era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga,
biscoitos, leite... tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam. As
gargalhadas também. Pra que televisão? Pra que rua? Pra que droga? A
vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na
esperança... Era a vida respingando eternidade nos momentos que
acabam.... era a vida transbordando simplicidade, alegria e
amizade....
Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até
que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos para
casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração
aquecido pela ternura e pela acolhida. Era assim também lá em casa.
Recebíamos as visitas com o coração em festa.. A mesma alegria se
repetia. Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta.
Olhávamos, olhávamos... até que sumissem no horizonte da noite.
O tempo passou e me formei em solidão. Tive bons
professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail.... Cada um na sua e
ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa.. Agora a gente
combina encontros com os amigos fora de casa:
Vamos marcar uma saída!... – ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem
epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas.
Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados
que assustadores.
Casas trancadas.. Pra que abrir? O ladrão pode
entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do
queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos do leite....
Que saudade do compadre e da comadre...